[One-Shot] O Anjo Sombrio

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Mr. Corleone
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[One-Shot] O Anjo Sombrio

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O ANJO SOMBRIO
Ele nada podia ver além daquele vagão iluminado. Podia ouvir o som do trem em movimento rápido, mas não conseguia ver nada além das janelas escuras e sujas de fuligem. Estava sentado em um banco lateral, os cabelos bem penteados, a pele pálida contrastando com o escuro de seu terno e seu sapato. Gostava de se trajar bem apesar da sua função não tanto comum. Gostava de ceder a certos caprichos pessoais embora a sua profissão não lhe cedesse muitos luxos. Tudo bem, ele já fazia isso havia muito, muito tempo... Já estava acostumado.
Enquanto o vagão sacudia rápido pelos trilhos logo abaixo ele olhou para as duas pessoas a sua frente com atenção. Costumava fazer isso embora em geral não lhe houvesse muito tempo. Era alguém muitíssimo ocupado. Mas tinha interesse em olhar as pessoas.
Dessa vez havia uma criança. Não gostava de crianças. Não, quer dizer, não gostava de levar crianças. Se sentia mal, péssimo. Como se estivesse roubando algo. Mas era sua função. Ele apenas seguia ordens superiores.
O garoto devia ter uns quatro anos. Seus cabelos castanhos espalhados pela testa enquanto dormia a sono solto com a cabeça encostada no colo da mãe. Ele desviou os olhos para a mãe. Ela estava sentada defronte a ele. Trajava um vestido vermelho e seus cabelos castanhos eram levemente cacheados. Assim como o vestido seus lábios também estavam vermelhos pintados de batom. Assim como o vestido e os lábios haviam também os olhos.
Olhos vermelhos.
Lágrimas.
Ele já estava acostumado com esse tipo de reação. É lógico.
O que mais lhe interessava é que cada pessoa reagia de um modo diferente.
Alguns se entregavam, quase indiferentes.
Outros tentavam negociar.
Alguns ainda ficavam irritados e tentavam resistir.
Praticamente todos choravam!
Ele já nem se importava mais. Não que fosse alguém insensível mas... depois de tanto tempo... a pessoa acaba ganhando alguma frieza.
Ele já estava frio demais.
Ele continuou olhando fixamente para a mãe diante dele. Ela, ao notar que era observada, passou a mão pelo rosto, e com a voz um tanto presa, perguntou:
–Por que nós?
Ele não pode deixar de sorrir. Um sorriso apático é verdade. Mas mesmo assim um sorriso.
–Todos me perguntam a mesma coisa – respondeu.
Ela respirou fundo e falou:
–Nem pergunto por mim. Não fazia mais questão de ficar. Pergunto por ele. Ele não merecia... Não agora...
Os dois olharam automaticamente para o menino. É. Ele não merecia. Não agora. Detestava levar crianças.
–Perdoe-me. Não posso fazer nada. Apenas sigo ordens.
Ela primeiro consentiu a cabeça, depois a ergueu. Estava curiosa. Eles normalmente ficavam curiosos.
–De quem são as ordens?
Ele hesitou. Como explicar de um modo que ela entendesse? Como explicar o que ninguém consegue entender? Afinal nem ele próprio compreendia ao certo.
–Eu... não sei... elas são mandadas de um outro lugar... eu não conheço-o pessoalmente.
–Que lugar?
–O lugar... presumo... para que estamos indo agora.
Ela pareceu entender. Deu uma fungada e comentou:
–Espero pelo menos que seja um lugar bom.
–É. Pode ter certeza que sim.
–Eu... não sei... – ela parecia preocupada – Fiz tantas coisas erradas.
–Todos nós cometemos falhas – Ele respondeu – O que realmente importa é estarmos de bem com nós mesmos e com o mundo.
Ela deu mais uma fungada. Não respondeu.
–O mundo é cruel – continuou ele – As vezes ele nos obriga ou induz a fazer coisas que não precisamos realmente fazer. E que, embora possa parecer que irá agradar a algo maior. Apenas nos prende e nos enfraquece. Não permite a nossa real felicidade.
Ela não falou nada. Apenas meditou. Pensando nas palavras que acabara de ouvir. Colocou a mão com unhas compridas no topo da cabeça do filho e começou a fazer um cafuné de leve, sem acordá-lo. Passados mais alguns minutos e alguns vagões ela tornou a perguntar.
–Como é que é lá?
Ele hesitou de novo. Por que será que eles sempre faziam perguntas difíceis?
–Não sei ao certo. Nunca estive lá.
Ela pareceu intrigada.
–Nunca esteve? Como não...
–Não! Nunca estive – respondeu ele um pouco amargurado – Minha função é levar as pessoas até a entrada, mas de lá nunca passar.
–Por quê?
Ele riu amargurado.
–Não seria bem vindo, eu acho. Lá existe muita luz. Eu sou uma criatura da sombra. Não posso passar.
Ela olhou-o chocada, ele não pode deixar de rir.
–Não que me restasse muito tempo para ir lá. Sou alguém muito ocupado, não posso simplesmente tirar férias.
Ela pareceu compreender, embora ainda estivesse muito confusa.
–Há quanto tempo você faz isso?
Ele franziu a testa pálida, como se tentasse recordar. Por fim falou calmamente...
–Desde as origens do universo.
Ela enrugou a face e perguntou:
–Qual é a sua idade?
Ele riu.
–Sou mais velho do que o próprio tempo. Surgi quando o primeiro surgiu, e desaparecerei quando o último desaparecer.
A mãe não pode deixar de olhá-lo admirada.
–E ninguém pode tomar o seu lugar? Nem que seja por um tempo?
–As coisas não são assim. Não aqui. Sou eu que tenho que fazer.
–Mas por que você?
–Porque ninguém faz melhor do que eu.
Mais um silêncio prolongado. O trem continuava a correr velozmente e, embora parecesse que já tivessem percorrido quilômetros infindáveis, a paisagem da janela continuava a mesma. Um escuro soturno e misterioso, como se o trem estivesse passando por um túnel gigantesco. A única luz que havia eram as lâmpadas naquele vagão de trem. Agora, com a visão menos turva pelas lágrimas, ela começou a examinar o compartimento com mais atenção. Não era simplesmente um trem daqueles antigos como imaginara a princípio. Era mais parecido com um vagão de metrô. E, embora fosse novo, estava em péssimas condições. As janelas estavam sujas e havia alguns vidros trincados. Havia vários vidros trincados na realidade e vários bancos quebrados agora que ela parava para observar. Era como se tivesse sido atacado por vários vândalos. Perguntara-se o que o deixara naquele estado, mas de repente descobriu que já sabia a resposta.
–Nem todos aceitam o inevitável com paciência não é?
Ele deu um suspiro cansado.
–Não. Boa parte não aceita o choque inicial. Não os culpo, muitas vezes é repentino demais para elas.
–As pessoas não aceitam o inevitável?
–Ah, aceitam. Depois de algum tempo todos acabam por aceitar. Diriam até que já aceitam antes de tudo acontecer, mas apenas no subconsciente. O que lhes dá a raiva e a negação, é apenas o medo.
–Acho que consigo entender – falou ela. – Acho que todos nós temos medo.
–Mas não disso – ele explicou – Vocês têm medo do desconhecido. É o desconhecido que vocês temem quando olham para cá. O que vocês não percebem é que, se há algum lugar do qual não devemos ter medo, é aqui. Aqui, diferente do lugar da onde vocês vêm, nada pode machucá-los.
Ela assentiu com a cabeça, pensando.
Ele continuou.
–As pessoas não compreendem a minha função. Acham que eu sou o destruidor de lares. O ladrão de amigos. Acham que eu sou o fim. Não é isso. As pessoas cometem esse engano tão banal. Não percebem que tudo no universo já aconteceu, acontece e irá acontecer de novo. O destino não é uma linha reta, é um círculo. E a vida é feita de ondas, sempre e eternamente batendo contra um paredão rochoso. Nada pode interferir no movimento e mesmo se algo conseguisse interferir só provocaria novas ondas.
Ela escutava atentamente. Enrugou a testa em alguns momentos e quando ele terminou de falar ela precisou de algum tempo para absorver o que escutara. Por fim, conseguira entender.
–A vida é feita em ciclos...
–Exatamente. E eu... eu não sou o fim... eu sou o princípio!
Ela não fizera objeções a essa sentença. Sentia-se mais consolada agora. Já começava a se sentir preparada para seguir em frente e aquilo que deixava para trás parecia cada vez menos ter haver com ela.
–Seria fácil se as outras pessoas entendessem assim.
–Claro, facilitaria o meu trabalho um monte!
Os dois riram. Ela ergueu a mão da cabeça do menino e levou o dedo aos lábios como a pedir silêncio e apontou para o filho. Mas já era tarde, o garoto entreabrira os olhos e levantara de leve a cabeça.
–Mamãe?... – o menino fixou os olhos sonolentos na mãe e depois os correu pelo resto do vagão – ...onde estamos?
A mãe ergueu a cabeça para Ele e, juntos, fixaram o olhar. E então ela respondeu:
–Estamos indo para um lugar muito bonito meu filho, muito bonito mesmo!
Ele ergueu o corpinho e se sentou direito ao lado da mãe, esfregando as pequeninas mãozinhas nos olhos. Depois olhou para os dois lados do vagão, e perguntou:
–Onde está o papai?
Ela tornou a erguer os olhos para Ele, e foi Ele dessa vez quem respondeu:
–Ele virá, mas não agora! Ele... tem umas coisas para fazer ainda...
O garotinho olhou espantado e um tanto curioso para ele, arregalou os pequenos olhinhos e perguntou:
–Quem é você?
–Eu? – Ele riu. – Eu sou um amigo de sua mãe. – falou, piscando para ela – E espero poder ser seu amigo também!
O menino não disse nada, apenas olhou-o e depois virou-se para a mãe.
–Esse lugar bonito tem parque de diversão?
Os dois não puderam deixar de dar risada aquela pergunta. A mãe então abraçou o filho e lhe deu um beijo na cabeça antes de responder.
–Tenho certeza que lá deve ter o melhor parque de diversões do universo.
O garroto sorriu, e perguntou empolgado.
–E quando nós vamos chegar?
Como se respondesse a pergunta do garoto, eles sentiram a velocidade do trem diminuir abaixo deles. Ela lançou a Ele um olhar nervoso, mas decidido.
–Nos veremos ainda? – perguntou, mas ela já sabia a resposta.
–Não.
–Imaginei...
Ele suspirou.
–Como falei, não tenho permissão de ir além daqui.
–Mas... porquê?
–Sou uma criatura da sombra... nem sequer existiria do outro lado.
–Mas você é bom! É uma... pessoa boa!
–Mas tenho uma função! Minha função é guiar as pessoas pela sombra até a luz. Mas só posso guiá-las, não atravessar com elas.
Ela baixou os olhos tristes.
O trem finalmente parou e as portas ao lado deles se abriram, e de repente uma luz ofuscante inundou todo o vagão impossibilitando de ver com clareza o que havia do outro lado do pórtico. Era uma luz branca. Pura. Limpa. Transbordando algo que inundou tudo ali.
Paz.
Eles olharam juntos para aquele portal e depois ela retornou a olhar para Ele.
–Adeus...
–Adeus.
–Vamos meu filho, temos que ir.
Ela segurou o menino pela mão e juntos eles se levantaram. O menino ainda lançou um último olhar para Ele enquanto os dois se encaminhavam sem pressa e com muita calma para as portas abençoadas ao serem tocadas por aquela luz fortíssima. Quando estavam prestes a atravessar ela ainda virou a cabeça uma última vez para trás.
–Você não me disse seu nome...
Ele olhou-a. Respirou fundo. E respondeu:
–Você o sabe. Sou conhecido por vários nomes. Inevitável. Ceifador. Anjo Sombrio... ou simplesmente pode me chamar de... Morte!
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"Vou fazer uma oferta que você não irá recusar"
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